sábado, 2 de abril de 2011

A estréia do Circo Shanghai

            Por motivos óbvios que dispensariam maiores explicações, este conto será narrado em primeira pessoa. No entanto, me sinto na obrigação de esclarecer que essa forma de narração não tem como objetivo se criar verossimilhança para o fato e sim narrar de forma fiel uma passagem insólita de minha infância que, ainda hoje, permanece viva em minha memória.
            Meu pai, um italiano inquieto e de belas lembranças, vez por outra tinha umas idéias e resolvia mudar de ares em busca de melhores condições de vida para a família. E nessas andanças fomos parar em um lugarejo distante de tudo, denominado Itaúna do Norte e por lá residimos alguns anos. Itaúna do Norte vivia da produção cafeeira. Afora isso, nada mais produzia.
            Sem grandes atrativos, a vida do povo de Itaúna do Norte resumia-se ao trabalho nas lavouras de café em dias úteis e nos finais de semana, para os adultos era um carteado à sombra de uma árvore qualquer, uma conversa fiada em porta de boteco, uma visita em casa de parentes e nada mais que isso. Já para as crianças, era um joguinho de bola de meia, uma pipa de jornal e algumas outras inocentes brincadeiras que aqui não merecem relato. E por falar em crianças, os casais de Itaúna do Norte levavam o velho e bizarro ditado ao pé da letra “De dia na agricultura e de noite na criatura”. Era raro o casal que não tivesse pra mais de cinco filhos e esse fato aguçava a insensibilidade de um velho sapateiro de uma perna só, conhecido pelo nome nada sugestivo de Argentino, que não se cansava de dizer: - Em Itaúna do Norte tem mais menino do que gente!
            E foi nesse mar de paz e simplicidade que certa ocasião aportou o Gran Circus Teatro Shanghai, que na realidade, não passava de um atestado de pobreza ambulante. A lona toda remendada mais parecia uma colcha de retalhos, onde descobrir a cor original dependia de uma minuciosa e longa pesquisa.
Mas quem disse que as crianças de Itaúna do Norte estavam preocupadas com as precárias condições do circo que acabara de chegar? Nada disso! Tudo que elas queriam era ver o circo em ação com espetáculos de trapézio, mágicas, marionetes, palhaços e o homem que engolia fogo. E para que isso ocorresse, todas queriam doar sua cota de contribuição nos trabalhos.
A sexta-feira foi dedicada à montagem do picadeiro, elevação da lona e montagem das arquibancadas de madeira. Os artistas iriam residir em barracas de lonas instaladas ao lado do circo.  A estréia se daria no dia seguinte.
Mas como manda a tradição mambembe, não existe espetáculo se o palhaço devidamente paramentado, não sair pelas ruas acompanhado de uma multidão de crianças, fazendo chamadas para o referido show. E por esse motivo, no sábado à tarde, Fala Mansa, o palhaço da companhia, percorreu as ruas de Itaúna do Norte cantando e as crianças em coro respondendo:

Hoje tem, hoje tem?
Tem sim senhor!
Hoje tem espetáculo?           
Tem sim senhor!
Hoje tem marmelada?
Tem sim senhor!
E o palhaço o que é?
Ladrão de mulher!

            Terminado o ritual, Fala Mansa com uma pasta branca, fez uma cruz na testa de cada criança. Essa marca representava o passaporte para que as crianças pudessem assistir ao espetáculo gratuitamente.
            As crianças que acompanharam o palhaço já estavam se dispersando quando o mágico do circo, com um vidrinho na mão, me chamou e mostrando-me uma nota de cinco cruzeiros, disse:
- Eu te dou essa nota se você me conseguir este vidrinho cheio de leite de mulher.
Por um instante hesitei em aceitar a estranha oferta, mas o olho grande no dinheiro me deu ânimo e perguntei:
Para que você quer leite de mulher?
E ele prontamente respondeu-me:
- Para colocar nos olhos, estou com conjuntivite!
Pensei com meus botões:
Que mal há em conseguir o leite para esse moço doente dos olhos?
E assim pensando, sai em disparada a cata da inusitada encomenda. Perambulei por uma, duas, três casas onde havia mulheres amamentando e nada consegui, todas deram uma desculpa mais esfarrapada que a outra, não se sensibilizando com meus argumentos. Quando já estava quase desistindo da empreitada, tive uma idéia magnífica: Fui até a casa de Seu Armando Cruz e lá, finalmente, consegui o leite.    
De volta ao circo, entreguei o produto, passei a mão no dinheiro e sai em direção à minha casa. Estava rico, jamais em toda minha vida, tinha colocado tanto dinheiro em minhas mãos.
Maldito dinheiro! Pois, assim que coloquei os pés dentro de casa e passaram-se alguns minutos, chega o delegado acompanhado de seu cachorro policial que carregava um cincerro no pescoço e o esposo da primeira mulher onde eu havia solicitado o vidrinho de leite. Além de não ter me servido a mulher ainda fez reclamação com o esposo, assim que esse chegou do trabalho.
Enquanto o delegado conversava com meu pai e o esposo agravado, revestido da inocência de meus dez anos de idade, fiquei pensando: Vou perder o dinheiro, não vou assistir ao espetáculo de estréia e ainda por cima, vou levar um corretivo de dimensões elevadas e duradouras lembranças.
Não passou muito tempo e fui convidado a acompanhar os três adultos até o circo. Tinha como tarefa, apontar o homem que cometeu o grande desatino de solicitar leite de mulher de Itaúna do Norte, transgressão imperdoável para os exemplares esposos do lugar.
Enquanto os três senhores caminhavam à frente, eu e o cachorro do delgado íamos atrás observando a conversa. Confesso que sentia uma inveja enorme daquele animal com aquele cincerro chato no pescoço, pelo menos ele era amigo do delegado, que naquela situação embaraçosa, representava a lei. As batidas do maldito cincerro, soavam em meus ouvidos como se fosse uma voz a repetir: - Você vai se dar muito mal ao final dessa história!
Quando chegamos ao circo seguimos direto para a barraca do mágico que nos recebeu de forma muito elegante e bastaram poucos minutos de sua argumentação mambembe para convencer a todos de que seu pedido nada mais era que a busca da cura de sua enfermidade e para comprovar a eficácia do referido tratamento, mostrou-lhes os olhos praticamente curados. E para finalizar, reforçou o convite para que todos se fizessem presentes ao show de estréia que se daria dentro de algumas horas.
Quando saímos daquele entrevero, o delegado cheio de curiosidade perguntou-me:
- Mas afinal, onde foi mesmo que você conseguiu o leite?
Nesse momento meu coração disparou e fez menção de sair pela boca, mas num esforço sobre natural consegui responder:
Foi na casa de Seu Armando Cruz.
Essa resposta não satisfez e não podia mesmo satisfazer ao delegado e ele mais curioso ainda, voltou a perguntar:
- Como pode ser se a mulher de Seu Armando Cruz faleceu há mais de dois anos?
Mais uma vez com a voz trêmula respondi:
Ele tem uma cabritinha que está amamentando dois filhotes.
Nesse exato momento, os três entreolharam-se fizeram ar de riso e seguiram em frente e eu ao lado do cachorro do cincerro no pescoço, continuei impassível.
Chegada a hora da estréia, praticamente toda a Itaúna do Norte se acotovelava nas diminutas acomodações do circo, inclusive eu, meu pai (que graças à intervenção de uma legião de anjos, a quem recorri naquele momento de aflição, havia perdoado meu deslize) e o delegado. As atrações foram as mais diversas: Trapezistas seminuas que fizeram as beatas rezarem o credo de trás pra frente, a luta mortal das marionetes no eterno conflito entre o bem e o mal, acrobacias mil do palhaço Fala Mansa. E para fechar com chave de ouro a noite de gala, o mágico (aquele do leite, lembram-se?), solicitou um voluntário da platéia para apresentar seu número de magia e como ninguém se dispôs a atendê-lo ele, gentilmente, convidou o delegado que durante a apresentação acabou botando quase uma dúzia de ovos no centro do picadeiro, diante dos olhos estarrecidos da população de Itaúna do Norte.     
 Na manhã seguinte, inconformado com a farta postura que praticara em público, o delegado pediu remoção para localidade ignorada de ninguém ter notícias suas e de seu cachorro com o cincerro no pescoço, em raio de duzentos quilômetros. Mais alguns dias, o circo se foi e meu pai, um italiano de asas soltas e alma mambembe, também nos convidou a partir.
Ao longo de minha vida tenho assistido a milhares de apresentações, mas nenhuma delas me calou tão fundo quanto a “Estréia do Circo Shanghai”, pois, foi nesse dia que percebi que o mundo é um circo gigante, coberto por uma lona das mais diversas cores, onde cada pessoa é um artista que representa seu papel e faz a roda gigante girar. 


02/04/2011



           

6 comentários:

  1. Conto muito envolvente, com detalhes que me fizeram ir de encontro ao lugar e viver a situação de perto. Parabéns sempre por sua grande capacidade de apresentar estórias fascinantes.

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  2. Belo texto, Tony. Misto de nostalgia e realismo fantástico. Parabéns pela primorosa lavra! Abraços.

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  3. Mais uma vez, um belo texto. Parabéns.

    Lamentável o fato de, atualmente, as crianças estarem privadas do prazer de passar por situações semelhantes; nem mesmo as do interior.
    O termo molecagem, hoje, ganhou outra conotação. Mais perigosa, infelizmente.

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  4. Ana Maria disse...
    Toninho tenho o maior prazer em ser a primeira pessoa a ler os contos e compartilhar com você a alegria de novas histórias.
    Te amo! Beijos Aninha

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  5. Olá Toninho Marques, se assim posso chamá-lo.

    Meu amigo Carlos Lúcio Gontijo me indicou seu blog.

    Amei ler "suas viagens" contos deliciosos escritos com simplicidade e leveza que me fizeram viajar em seus personagens.
    PARABÉNS!!!!

    Ângela Maria

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  6. Prezada Ângela.

    Você pode me chamar como quiser e será sempre um prazer receber seus comentários. Que bom que o Carlos Lúcio está me dando uma força!

    Obrigado e volte sempre!

    Tony Marques

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