quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Se a dívida é de pecado graúdo... Sai de baixo que o castigo vem de cima!


           Contava minha avó Vitalina, possuída de grande sabedoria, que nos idos anos da década de vinte, aconteceu em Santa Rita do Pontal acontecimento de vulto e de lembranças duradouras:
Santa Rita do Pontal era lugarzinho de confusão, seu povo dava tiro por qualquer coceirinha no dedo. O índice de renda local girava em torno de três a quatro armas per capta. E de tiro em tiro criou-se a fama de que Santa Rita era terra de homem valente e foi nas asas dessa fama que as pessoas batiam no peito e diziam: Aqui ninguém bota bronca não, se botar a gente resolve tudo é na base do chumbo grosso!
Certa ocasião não se sabe de que buraco foi que surgiu um sujeitinho gago de fala difícil, com pasta de couro na mão e emitindo sons guturais de ninguém entender uma palavra sequer. No embalo desse trava-língua, ainda com as lembranças da primeira guerra mundial na cabeça, o povo logo desconfiou que o recém chegado tratava-se de um espião estrangeiro preparando ataque em terras de Santa Rita e no rabo dessa desconfiança, o mesmo acabou sendo remetido para fora da cidade a poder de pontapés e pescoções. Dias depois, a notícia: O gaguinho, suposto espião estrangeiro que planejava atacar Santa Rita, não suportando os rigores do corretivo aplicado em seu lombo, acabou batendo com as botas, a poucas léguas dali. 
Vez ou outra Dona Gertrudes, rezadeira de fé, benzedeira afamada e parteira nas horas vagas, fazia o nome do pai e advertia: - Um dia Santa Rita do Pontal vai pagar caro pela morte do estrangeirinho de língua enrolada e o castigo virá do céu que é pra ninguém escapar do corretivo!
A profecia da rezadeira crescia e se espalhava feito um monstro apocalíptico na cabeça do povo de Santa Rita, fazendo com que até os valentões do lugar esconjurassem e tremessem de vara verde.
Os anos passaram e Dona Gertrudes também passou dessa pra uma melhor, sua profecia, no entanto, continuou martelando a cabeça do povo, como uma trombeta do além, anunciando os rigores dos céus. E nesse ínterim de vem castigo, não vem castigo, apareceu em territórios de Santa Rita do Pontal, certo Pastor Josiel de Tal, que prometia milagres de qualquer dimensão a preço de ocasião. E no aproveitamento da módica oferta, o povo debandou pras bandas do Pastor de não ficar uma pessoa, sequer, fora dessa pechincha de milagres e outros benefícios. Como primeiro milagre, o povo solicitou que o pastorzinho de fala mansa e pisada macia, exorcizasse Santa Rita do Pontal, da ameaçadora profecia de Dona Gertrudes.
Pedido feito, pedido atendido. E o pastor, em solenidade regada a bebidas finas e cabrito gordo, declarou Santa Rita do Pontal livre de qualquer ameaça de ordem vingativa vinda de poderes superiores e nessa investida de exorcismo e outros milagres correlatos, Josiel caiu nas graças do povo, de almoçar em casa de um, jantar em casa de outro e assim por diante. Nesse caminhar o tempo passou e já ia longe quando o aconteceu o inesperado:
Um aviãozinho teco-teco, desses de matar empresário de pouco investimento, não se sabe de onde saiu, resolveu sobrevoar, não se sabe procurando o que, a fervorosa Santa Rita do Pontal, que já atendia pelo reduzido nome de Pontal, pois, Santa Rita, por motivos óbvios, já havia sido abolida há tempos.
Foi nesse momento que, desconhecedora de tal modernismo, Santa Rita do Pontal tremeu de cabo a rabo e o povo buscou pela ajuda do Pastor Josiel e esse em velocidade de raio, já tinha virado fumaça em lombo ligeiro no primeiro ronco do teco- teco, levando a tiracolo menina mimosa, começando cantar pra primeira postura.
Nessa confusão toda, o caso mais interessante, porém, aconteceu no seio da família do Coronel Juca Pinheiro, que já havia trocado de crença e debandado para os lados do pastorzinho milagreiro e de boas falas. Tudo que restava de ordem religiosa, nos domínios da fazenda, era um velho cruzeiro fincado em seus arredores, mas mesmo assim, com dias contados e alguns outros pequenos utensílios de menor valor religioso. 
Dona Filomena, mais conhecida por Dona Filô, a matriarca da família Pinheiro, ao ouvir o ronco do teco-teco, pulou da cama, onde padecia de paralisia nas pernas há mais de dezena de anos e agarrada a um velho terço que ainda restava, gritou:
- Vamos que a profecia de Dona Gertrudes está se materializando, corram todos para o cruzeiro, que Santa Rita está sendo atacada pela guerra dos estrangeiros!
Enquanto todos corriam, esquecendo-se que tinham mudado de religião, Dona Filô buscava desesperada por um antigo e eficiente livrinho de orações, onde tinha uma ladainha completa de todos os santos. Por engano, ao invés, de pegar o referido livrinho, Dona Filô pegou a caderneta de compra do armazém e de joelho em terra puxou a ladainha, acompanhada por todos:

- Um pacote de sal...
·        Rogai por nós!
- Um quilo de lingüiça...
·        Rogai por nós!
- Um saco de açúcar...
·        Rogai por nós!
- Uma lata de sardinha...
·        Rogai por nós!

E no embalo dessa oração, recheada de secos e molhados, a família Pinheiro acabou rezando toda a caderneta de compras do Armazém Popular, com trinta anos de bons serviços prestados à simpática população de Santa Rita do Pontal. Enquanto que o aviãozinho teco-teco, que na cabeça do povo, tinha missão de fazer a cidade voar pelos ares, deu meia volta volver, bateu asas e desapareceu por entre as nuvens e montanhas, desistindo do ataque, pois, o combustível já estava pra acabar. Segundo contava minha avó.


11/12/2010

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