quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Quem voou uma vez na vida, jamais desiste de ser passarinho


             A pequena cidade de Mirabela do Norte estava contaminada de modernismo estrangeiro. Há dias não se falava em outra coisa nas esquinas e praças da comarca, que não fosse sobre a tal festa do Halloween que iria acontecer no Clube Recreativo Municipal. A verdade é que o invencionísmo americano tinha aterrizado de mala e cuia em territórios de Mirabela do Norte sem ser chamado e parecia não querer mais arredar pé de lá. Tão empolgado estava o povo daquelas bandas, que muitos já aventuravam pronunciar o nome da referida festa, gastando um inglês arrastado com sotaque matuto. E foi no embalo dessa contaminação que Dona Marcolina Meirelles, mulher do Meritíssimo Juiz de Direito Nepomuceno Meirelles, agasalhou seus quase cento e cinqüenta quilos sobre chinelinha de couro e navegou pela Rua Floriano Peixoto indo ancorar sua farta pessoa no interior do tradicional Bazar Brasileiro.
Dito a que veio, o caixeiro Juquinha Feijó com mais de vinte anos de bons serviços prestados ao Bazar Brasileiro e ao bom povo de Mirabela do Norte, trafegou para cima e para baixo nos degraus da escada, subindo e descendo fantasias para a esposa do Juiz. Finalmente, depois de muitas medidas, ajustes e reparos, Dona Marcolina conseguiu encaixar suas avantajadas partes dentro de uma fantasia.
Findada a busca pela fantasia, Dona Marcolina solicitou mascara de lustro, coisa pra ser vista de longe, pois sua pessoa queria fazer “bonito” na festa do Halloween e por nada desse mundo, abria mão do prêmio a ser oferecido pela Associação Comercial do Município, para a fantasia de bruxa mais horripilante. Foi nesse momento que Juquinha Feijó, revestido de uma ingenuidade bestial, esqueceu-se de que o pensamento é o livre arbítrio do ser humano e que baseado nessa filosofia podemos pensar o que bem entendermos sem qualquer tipo de censura e punição, desde que pensemos em silêncio.
Ele, pobre coitado, não seguiu a risca o princípio de tal regra filosófica e pensou alto bem nos ouvidos de Dona Marcolina: - Com relação a mascara, acho que é plenamente dispensável, pois de cara limpa certamente a senhora ganhará o prêmio da gloriosa Associação Comercial com as duas mãos amarradas para trás e nesse caso, sugiro que leve apenas o elástico da máscara.
Por alguns segundos, Dona Marcolina ficou em silêncio, em seguida juntou os cacos das palavras proferidas, encaixilhou toda aquela prosa insânia de Juquinha em seu cérebro de barata e percebendo a ofensa feita à sua pessoa, disse: - Pois fique o senhor sabendo que sou uma cidadã de bem, que pago rigorosamente meus impostos, estou em dia com o carnê do Baú da Felicidade e não costumo levar desaforos para casa.
Dito isto, abriu os braços em forma de hélice de avião, ergueu a perna esquerda no ar, deu dois giros de 360º no eixo da perna direita e despachou uma cacetada com efeito tão danoso e sem propósito no escutador de lorota de Juquinha que esse pegou carona nas asas desse veneno, voou de passarinho e após romper a porta do Bazar Brasileiro, atravessou a Rua Floriano Peixoto, atropelou um casal de andorinhas desavisado que atravessou seu caminho naquelas alturas, deu duas voltas panorâmicas sobre o coreto central da Praça Duque de Caxias e quando seu vôo perdeu sustância, ele caiu desfalecido aos pés da estátua do Patrono do Exército Brasileiro.
Desagravada a poder da cacetada desferida nos córneos de Juquinha, Dona Marcolina ainda rodopiou mais alguns segundos até perder força, bateu com uma mão na outra em sinal de serviço executado e deslizou as chinelinhas de couro pela Rua Floriano Peixoto em direção ao Fórum Municipal, ocupando quase todo o passeio com o vai e vem de sua bagagem.
Quanto a Juquinha, do jeito que caiu ele ficou e a multidão logo se aglomerou ao seu redor. Até bolsa de apostas acerca de sua saúde aconteceu: Enquanto uns apostavam que ele havia apenas perdido os sentidos contaminado pelo ar rarefeito de seu vôo, outros apostavam que ele havia morrido, pois não era possível alguém sobreviver a uma cacetada daquela dimensão.
Socorrido e rebocado para o consultório do Doutor Setembrino Bivar, Juquinha Feijó passou três dias e três noites desfalecido e sob observação permanente de médico e enfermeiras, ao final desse período ele abriu os olhos, cantou de bem-te-vi, bateu asas e ameaçou voar pela janela pra ganhar o céu de anil, pois o céu é dos passarinhos. Acudido a tempo, a tentativa de fuga foi abortada e uma dose dupla de Seroquel 500mg, daquelas de sossegar leão com dor de dente, trafegou pelas suas veias e vasos adjacentes e ele dormiu mais 24 horas sem parar, preso nessa gaiola medicamentosa de não deixar escapar nem pensamento.
Levado para o sobrado onde morava com Dona Lorena Feijó, com quem era casado a mais de vinte anos, Juquinha acordava de dois em dois dias, mas assim que ameaçava abrir os olhos e voar de bem-te-vi, a presença do competente Seroquel 500mg era requisitada e nos braços desse medicamentoso porreta, o paciente dormia mais uma temporada, sonhando com passeios entre nuvens de algodão.
Certa manhã, Dona Marcolina Meirelles, responsável pelo desatino causado na vida e quase morte de Juquinha, foi visitá-lo no sobrado e com cara de Madalena chorou nos ombros de Dona Lorena e anexo a esse choro fez pedidos de perdão, dizendo não ser sua intenção deixar o pobre Juquinha naquele estado passeriforme. Na porta de saída, sem muita cerimônia, mas mostrando-se aparentemente abatida com acontecido, Dona Lorena Feijó aceitou os pedidos de perdão de Dona Marcolina e essa se foi com a consciência leve e o corpo pesado.
Assim que a visita virou as costas, Dona Lorena Feijó correu para o quarto, pulou para frente do espelho e abriu o falador de besteiras: - Que pedido de perdão coisa nenhuma Dona Marcolina, a senhora me fez foi um grandíssimo favor, qualquer dia desses suspendo o Seroquel 500mg, esqueço a janela aberta e deixo esse bem-te-vi de asa quebrada voar para a soleira e da soleira para as barbas de São Pedro. E ai, ninguém mais me segura e não vai ficar pedra sobre pedra, serão três dias de luto, nem um minuto mais e vou me agasalhar confortavelmente nos braços da pensão da previdência social e da apólice de seguro de meio milhão que esse boitatá fez em meu beneficio. Eu ainda tenho é muita lenha pra queimar, Dona Marcolina. Eu disse: Muita lenha!
Juquinha Feijó, que havia acordado no exato momento em que Dona Lorena proferia sua prosopopéia diante do espelho, deixou escapar duas lágrimas furtivas, fechou os olhos novamente, deu boa noite pro gato e voou de passarinho para o paraíso, como era de sua vontade.


28/11/2010

Nenhum comentário:

Postar um comentário