domingo, 3 de julho de 2011

O segredo das estrelas

A alma itinerante de uma família que tinha sonhos providos de asas de beija flor, fez com que fossemos ancorar, por um curto período de nossas vidas, na pacata e acolhedora Campina do Leste. Uma pequena casa, sem qualquer ostentação de luxo ou conforto, nos acolheu durante o tempo em que permanecemos por aquelas paragens.
A residência ficava na Avenida das Palmeiras, que começava no centro da cidade e findava na Praça dos Bem-te-vis, já na saída da cidade em direção à capital do estado.
Na Praça dos Bem-te-vis, erguia-se imponente a igreja de São Sebastião, ostentando torre elevada e uma cruz em seu ponto mais alto, símbolo da fé cristã e pouso preferido das andorinhas migratórias. Nas proximidades da igreja ficava o estabelecimento de meu tio Bartholomeu: Um comércio de secos e molhados de pequenas dimensões que vendia de um tudo, de agulha a lingüiça defumada, passando por pinicos esmaltados, bules e chaleiras de bico, podiam ser encontrados na gloriosa Mercearia do Barthô.
Eu, andarilho da educação, que vivia migrando de um colégio para outro, me matriculei no Instituto Educacional Castro Alves. Estudava na parte da manhã e na parte da tarde ficava dando sopa nas cercanias da mercearia pegando pequenos bicos, que ao final do dia, quando meu tio estava de bom humor, me rendia alguns trocados. Nada significativo, mas o suficiente para me garantir uma merenda descente, no dia seguinte.
Tudo que falei até aqui, nada mais é do que a armação de um pequeno cenário para contar a história de Seu Clemente. Um senhor de cabelos grisalhos, passos lentos e que dizia contar com mais de cem anos de idade. Tinha uma particularidade: Fazia uso, de forma impecável, das palavras no plural, todavia, fora de contexto.
Todos os dias, religiosamente, Seu Clemente adentrava a mercearia de meu tio, aproximava-se do balcão e fazia o mesmo pedido: - Seu Barthô, me vê um ovos! 
Tio Barthô, como que admirando a forma elegante e incorreta de falar de seu mais ilustre e assíduo freguês, embrulhava o ovo e dizia: - Aqui está o seu ovos, Seu Clemente!
Quando a tarde caia e as luzes dos postes da praça e da torre da Igreja São Sebastião acendiam, Seu Clemente caminhava até o centro da praça e lá sentado em um banco, ficava contemplando as estrelas. Aos poucos as crianças iam chegando, aproximando, até que alguém pedia: - Seu Clemente, o senhor conta uma história pra nós?
Calmamente, Seu Clemente dirigia o olhar para o autor do pedido e respondia com toda calma do mundo: - Conto sim!
Antes de iniciar a história, no entanto, ele olhava mais uma vez para o céu e perguntava para si mesmo, em voz compassada: - Qual será o segredo das estrelas? Em seguida, sentenciava: - Um dia, todos nós saberemos!
Dito isto, Seu Clemente que se dizia filho de antigos escravos, dava inicio a mais uma de suas fantásticas histórias que, invariavelmente, iniciava-se assim: - Era tempo dos escravos...
Apesar do inicio de cada história prenunciar tristeza, as histórias de Seu Clemente eram sempre recheadas de sonhos e fantasias, se ele conhecia histórias tristes, estas deveriam estar enclausuradas em um baú trancado a sete chaves, bem no fundo de sua alma.
Certa tarde, assim como fazia todos os dias, Seu Clemente aproximou-se do balcão da mercearia e perguntou: - Seu Barthô, tem pães?
Meu tio, implacável, respondeu de primeira: - Nães!
Este foi o último diálogo que presenciei entre Seu Clemente e Tio Barthô. No dia seguinte, bem cedo, as asas do beija flor se agitaram, levantamos ancora e partimos em busca de novos horizontes e Seu Clemente permaneceu sentado no banco da praça, contando suas histórias maravilhosas e tentando desvendar o segredo das estrelas.




02/07/2011

3 comentários:

  1. Toninho,
    Que conto gostoso! Acredito que pelo interior afora ainda existem figuras lendárias como o "Seu" Clemente. Abração.

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  2. Toninho,
    quando li o conto já visualizei a Merceraria do seu Barthô, como tantas de "secos e molhados" que tinham no interior e o "Seu Clemente", conheci vários e ainda me lembro dos "causos" da minha infância. Adorei!
    Ana Maria

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  3. Na minha vida teve um Seu Clemente que atendia pelo nome de Gerardão. A diferença era que seu analfabetismo o impedia de falar no plural e, às vezes, errada até no singular. Era nosso contador de estórias de assombração em preferência. Depois saía de casa em casa entregando os meninos e meninas que borravam de medo. Em vez do segredo das estrelas (me lembro como se fosse agora), ele dizia: tenho um segredo guardado no peito que não conto nem pra mim.
    Antônio Fonseca - poetafonseca@yahoo.com.br

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